sexta-feira, 29 de maio de 2020

já não sei mais

já não sei mais
a cor do teu cabelo
o timbre da tua voz
o gosto do teu beijo
o cheiro da tua pele
a textura do teu pelo

eu me esqueci
os detalhes do teu rosto
o som do teu suspiro
o sabor da tua coxa
o perfume da tua nuca
a maciez das tuas costas

tento lembrar, eu não consigo
as curvas do teu corpo
o murmúrio do teu sono
o paladar da tua carne
o aroma das teus dedos
e a sensação de te tocar.

fecho meus olhos, mas não consigo
tudo que registrei com tanto mimo
abandona sem aviso meu pensamento 
já não sei mais, eu me esqueci 
tento lembrar, eu não consigo
e todos meus sentidos
que ontem te deram olá
fica à vontade, pode entrar
não conseguem por nada recordar
quem é você? já não sei mais

domingo, 24 de maio de 2020

nunca prestei muita atenção em seus braços lentos

nunca prestei muita atenção 
em seus braços lentos, 
tão pouco em seu dessossego. 

os planetas perceberam 
minha omissão 
e gentilmente 
me convidaram 
para um café da tarde, 
me confessaram meu 
(inocente) 
descuido 
e eu, 
tão jovem, 
permaneci calada 
e até mesmo insultada
com meus companheiros sagrados. 

sabia que não era para ser, 
sim. 
mas não me preocupei 
em ignorar meus presságios,
 estava tão extasiada 
que me corrompia, 
não prestei atenção 
nos sapatos ao pé da porta,
prontos para ir embora. 

não vi seus olhos vazios 
me dizendo tudo 
que eu precisava ouvir p
ara concretizar 
o que os sábios astros 
me mostraram carinhosamente. 
não me recolhi a tempo,
 pois me servia junto 
com pratos e talheres, 
oferecendo colo, nutrição, alimento. 

doce, 
confiável 
e transparente. 

sei que parte da minha vaidade, 
afinal sempre fui satélite 
da minha constelação. 

muito se sabe que não é permitido 
fugir das linhas do destino 
e da gênese. 

domingo é dia de renascimento, 
recolho a louça da mesa, 
varro o chão 
e limpo o quintal. 

está tudo tão bem agora. 
abro as janelas, 
deixo o sol entrar. 

me sinto iluminada, 
conduzida pelos meus guias 
que me amam e me cuidam. 

sinto todo o carinho 
desse universo, 
domingo é dia de descanso.

sábado, 23 de maio de 2020

não escreverei sonetos pois ignoro

Não escreverei sonetos pois ignoro
o anseio de pertencer à algum lugar
Jazo deslocada, longe dos arquétipos
poéticos humanos, pois caibo apenas à
minha própria quimera infiel e
não amarei novamente homens que 
sobrevivem de frutos femininos, donde
extraem todo amor, toda e dor e tudo
que lhes incumbir no mais íntimo sentimento.
Renunciei minha lucidez para poder beber,
além das garrafas vazias que já deixei,
mas beber da cerne de minha oculta
criação que em sigilos me arquiteto.

Debilitado está meu corpo, mas os dias são
breves e meu coração há de deixar de doer.

enquanto a madrugada vai embora

Enquanto a madrugada vai embora
O céu me traz as boas novas;
Está frio e ele morreu

Por quantas praias aos domingos percorri
Buscando inutilmente resgatar sua última lembrança?
Que agora desfalece em um sorriso
Está frio, é passado, ele morreu!

Deixei memórias no parapeito e pela rua
É impossível fingir que em tudo não há uma explicação
Até as cortinas em poesia fazem sentido
À nós e também à elas que sentem os meus versos
Umas tristes, outras mais tristemente
Rindo de mim! A donzela que se fez vilã

Crédula, amei tanto sem saber
Que de amar há como se morrer
Porém meu coração agitado
Está feliz agora que ele jaz em mim!

Mas o pequeno metal retorcido sabe mais 
Que muita gente e pesa mais
que muita coisa... 

Notória a bagagem que trago
Com tanto amor preservado
E lágrimas de paz
Pois ele morreu
E sobre esse sofrimento
Não canto mais

sexta-feira, 22 de maio de 2020

bárbaros fios do nascer solar

bárbaros fios do nascer solar cortam minha pele desprotegida
pele minha despida das vestes pelas tuas rápidas mãos ladinas
quando as glândulas dos meus lábios se encontram com os lábios teus
meu corpo dissolúvel é entregue em banquete prostrado à ti refeição
permito que semeies meu tronco servo com teu insaciável palato 
teus fantasmas se cruzam com meus fantasmas em balé esquivo
a agitação de nossas pernas ao badalar do meio dia incinera a cama
e eu sinto a conexão total do meu ser ao teu. inteira, mas unilateral  
provei do teu mais íntimo gosto e gostei, vi coisas que meus olhos
não sabiam que existiam e provei sabores que minha boca até hoje
desconhece a procedência. mas às três da tarde passo a chorar 
o anúncio triste de nosso fim se esvaindo liquoso entre minhas coxas
repleta de frutos, polinizada pela tua língua eloquente
o entardecer anunciado dentro do meu estômago que borbulha
já que dentro de mim tu se eternizas puro e transcendente
alaranjado teus olhos agora ausentes, letárgicos e indiferentes à mim
parto de ti completa e à meia noite levanto, me despeço contemplativa
me despeço e te aprecio o sono tranquilo, meu sublime fascínio
as lágrimas dos meus olhos contam: nos amamos desconexos, ficcionais
pois te amei sozinha enquanto teu corpo carnívoro do meu fez alimento
nua, parto sozinha, certa de que nunca fostes meu, mas a passagem
fostes o portal, a transição, etéreo. muito agradeço e muito lamento
e para o oculto desacompanhada eu parto, para sempre desapareço

dominei a palavra e virei vocábulo

Dominei a palavra 
e virei vocábulo. 

Narrei meu íntimo,
 minhas vidas 
e verdades. 

Confessei a insensatez, 
frutifiquei excêntrica. 

Vociferei feroz uivos 
serenos em sossego,
folheada. 


As janelas sempre abertas 
para quem quisesse me visitar. 

O sossego acabou. 

De tanto me conhecer, 
me percebi confinada 
dentro de mim. 

Contente, 
mas inconformada, 
com o mundo inteiro 
a se revelar. 

Ouço agora 
os murmúrios 
do oculto 
me chamando. 

Meu espírito instintivo 
me devora e fala: 
ouça. 

Ouça as águas 
e seus manifestos, 
o canto dos animais 
e dos homens 
em harmônia 
com o cântico 
da terra. 

Eu não pertenço mais à mim 
e me entrego sem medo. 

Feche os olhos. 

Quantos gritos 
moram 
dentro do silêncio? 

Paradoxo. 

Nada mais faz sentido, 
mas jamais estive tão lúcida, 
eu oscilo eufórica. 

É a vida vivente 
derramada a cada instante 
que percebo o macrocosmo 
que, 
em eterna bênção, 
eu habito. 


Vibrante, sonora, onipresente.
Sou tua.

dezessete

dezessete
liberdade

dezoito
irresgatável, perdemo-nos
talvez eu nunca entenda
quero te chamar, paixão

dezenove
minha casa, solidão
indefesa, despreservada

vinte 
confio em meus propósitos
amei, amei, amei
de tanto amar
eu morrerei

vinte e um
ressurreição 
obrigada

vinte e dois
liberdade


"em seis dias Deus fez o mundo e eu refiz o meu"
Memórias Póstumas de Brás Cuba, Machado de Assis

de leve punho escrevo no papel rascunho


de leve punho escrevo no papel rascunho:
ainda mesmo ontem estava apaixonada
transmutada pelas tuas palavras imprudentes
deixo de ser substância e viro outra espécie
rudimentar, caleidoscópica, boca ardente

agora, quem sou eu?

plural e simples

ancestral 

-- dentro da mente trágicas notícias
-- cada extrato meu contado à ti
-- mas em teus olhos, desabrigo.

quinta-feira, 21 de maio de 2020

minha humanidade não me prende ao mundo

Minha humanidade 
não me prende 
ao mundo, 
há muito me sinto 
fumaça 
e sem forma. 

Vivi todos 
os estados da matéria 
e, 
apesar da liquidez 
da pronúncia 
e do sentimento,
meu temperamento 
me fez gás. 

Meu interior 
me mantém segura, 
ainda que 
minhas rachaduras externas 
não me façam aos outros
lar e abrigo, 
sou meu lugar bem-vindo 
e aprendo também 
a ser 
meu próprio sistema corrompido.

tic tac

tic tac

noites de verão tem cheiro forte e me lembram de um passado tão longe que parece não ter realmente acontecido, vejo aquela menina manchada pelo esquecimento de seus detalhes e a chamo para passear e andar e bater perna e dar gostosas gargalhadas sobre como ela já sabia que eu viria e como eu havia me esquecido de tanto que eu sabia naquela idade a ponto dela estar dois passos a minha frente mesmo que o tempo esteja a meu favor. ela segura minhas mãos com ternura e me encara e me puxa pra perto e sussurra um segredo em meu ouvido, segredo que eu havia deixado-para-lá porque a gente cresce e vira adulta e pensa que as coisas certas da vida são bobagem e passa a jogar o jogo da realidade dos outros, mas ela me lembra desse segredo essa menina que um dia fui troca de lugar comigo e me traz pra volta de mim

terça-feira, 19 de maio de 2020

me reviro em meus lençóis

me reviro em meus lençóis
pensando nos teus olhos
que me reviram do avesso

é estranho, me sinto tão vulnerável
mas eu não tenho para onde correr
o que é para ser, vai ser

teus beijos e teus lábios jamais senti
mas tão violento meus sentimentos me sequestram
para à ti me entregar e apenas tua ser
indissolúvel, inteira

eu previa tua chegada
e em todos os dias da minha antiga vida
eu me preparei para esse momento
onde eu enfrentaria teus olhos

engolida pela tua boca
decifrada tão facilmente pelas tuas mãos
eu me assusto e me desespero
teus misteriosos pensamentos me tornam transparente

e eu que sempre tive grandes ornamentos
fico simples, facilmente desvendada
me sinto miniatura, tão pequena e expandida
enorme, grande, gigantesca e dicotômica

segunda-feira, 18 de maio de 2020

eu nasci para amar

Eu nasci para amar,
mas os céus me mostraram 
que isso não significa 
que nasci para ser amada. 

Os mares me apontam 
meus caminhos 
e eu sigo certa 
do meu propósito maior. 

Eu oro baixinho 
e em minhas meditações 
eu agradeço, 
pois sei 
que atrás 
de todas as minhas dores 
tão humanas 
se encontram 
e se encaixam 
as grandes verdades superiores 
em fractais silenciosos. 

Eu sinto muito por sentir, 
eu peço perdão pelos meus frágeis tropeços, 
eu te amo pelas minhas glórias 
e também te amo pelas minhas tragédias, 
eu sou grata por cada segundo que existo.

ele é homem formado

Ele é homem formado, 
cheio de filosofias
 e bêabás 
sobre os mistérios 
por trás das cortinas 
do grande espetáculo da vida 
e da morte. 

De longe pareço 
apenas uma menina ao seu lado. 

Minha identidade 
agora está marcada 
pela sua presença 
como se fossem pequenas digitais 
soltas pelo quarto 
que denunciam 
o crime perfeito. 

Eu sou seu crime, 
fui cometida pela sua força
e estou certa de que 
confiaria em cópias perfeitas de mim 
em suas telas e pinturas. 

Tenho gosto em nos enxergar 
dessa maneira, 
complementares e cúmplices 
de um amor que 
apenas nós dois conhecemos. 

Amor este que faz de nossas vidas 
a grande beleza.