sexta-feira, 26 de fevereiro de 2021

o hemisfério norte do teu corpo traçam tua barba e voz

 


O hemisfério norte do teu corpo traçam tua barba e voz,

mais presentes para mim que teus olhos e cabelos. 

Não sei o motivo de me prender em teus finos detalhes 

mas mesmo sem explicação me perco em silêncios

nas névoas a traçar rotas pelas tuas formas e minúcias.


Me degusto de tuas costas celestes 

e os teus sinais de nascença brilham

luminosos a me apontar direções sem razão 

sinais que turvos me levam desenfreados

aos teus locais de inesperada beleza. 


Me prostro à te admirar por toda manhã enquanto dormes, 

a te navegar entusiasta, me encho de ânsias e poderes

as ondas cardinais da tua respiração são como bússola 

sei que do teu corpo posso descobrir o que quiser, 

e teu torso cálido repousa em meu colchão e eu diluo. 


Passo a ponta dos meus dedos pelos teus pés desafiada, 

ao alcançar teu calcanhar percebo um vibrar inaudível 

te arrepiar os pelos das pernas e rio minhas bobas risadas

de quem não se contenta e deseja mais. 

Eu quero mais de ti.


Ao beijar-te a cintura e barriga, noto que teu sono se afasta, 

mas não te quero desperto, te quero em quietude suprema

assim posso partir solitária pelas minhas cruzadas e descobertas.


Então permito o tempo passar assim, 

curiosa pelo teu cheiro que flutua pelo ar do meu quarto. 

enquanto tu és o pélago imenso de oscilações marítimas, 

e passo a sonhar acordada em marcar meu chão no teu peito.

terça-feira, 23 de fevereiro de 2021

às vezes me percebo de fora

 


às vezes me percebo de fora 
e tão somente desse local 
não sou nítida, 
não me distingo. 

às vezes, menos do que posso, 
mais do que devo, 
vago entre as atmosferas 
que me cobrem 
e me observo os detalhes 
que tornam eu, 
ser eu para os outros. 

aos meus olhos não me reconheço, 
mas curiosa 
me atento aos meus verbos e trapaças. 

quem é esse ser que vos fala? 
que os cumprimenta, 
que os pisca entre frases 
e dizeres tímidos? 

lá dentro é tudo tão simples,
tão claro, 
direto e meu. 

aqui fora eu me assombro, 
não sei dizer quem é essa figura. 
de rosto pálido
 e mãos múltiplas sobressaídas 
entre gaguejos e miúdos. 

quem é essa que me compõe, 
que me conta aos atentos devagar? 

quem é essa que sou 
aos olhos dos que me cruzam? 

quem é essa de voz 
tão mansa, tão terna, 
que teme perder a doçura?
sou eu? 
ou pedaço meu 
que escolho a dedo 
contar para os que me ouvem? 

e em minhas piores angústias 
e temores, 
é esta que me escapa 
quando não estou vendo?

terça-feira, 16 de fevereiro de 2021

muito a dizer, acabo por registrar

 



muito a dizer, acabo por registrar. escrevo porque escrevo e não tenho nem lembranças

para narrar as épocas em que o ímpeto do verbo não estivesse a caminhar junto comigo

meu prazer é este: o meu perceber e registrar este justo espaço entre o observar e anotar

e os vestígios das plásticas palavras ainda não ditas são o maior de meus desassossegos

logo a atemporalidade e continuidade são a arte perpétua da escrita que aqui transporto

escrevo porque escrevo, escrevo porque preciso e não as palavras meramente regurgito

cada vírgula é pensada como bailes boêmios entre meus dedos e consciência constante

observo, sinto, transcrevo, registro quem sou, quem fui e talvez até premedite quem serei

sinto que me conto ao mundo toda a vez, ainda que eu não seja lida, tampouco lembrada

e a minha vida faz sentido assim desenfreada e nas lacunas de tempo em que estarei viva

permanecerei viva e valem minhas palavras, mesmo que só e ainda quieta eu permaneça.

domingo, 14 de fevereiro de 2021

as quatro paredes do meu quarto

 


As quatro paredes do meu quarto

Me atormentam por todo o dia

E à noite me trancafiam

E me transformam

Em cativa.

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2021

o que seríamos se tivéssemos sido

 



o que seríamos se tivéssemos sido

até onde teríamos ido sem que o acaso das linhas

tivessem por fim arrebentado o chão, assoalho e madeira

até onde, bem meu?


se antes de esqueceres como são meus olhos ao dormir

antes de você notar e decorar meus modos e manias

ou mesmo até após uma certa ou outra briga

e beijos retalhados entre impossíveis amanhãs

e as notas de café que guardo nos lábios

não pude eu me contar à ti primeiro


seríamos o quê após nós sermos?


talvez a comprar móveis e a decorar a casa

a colocar duas colheres a mais de tempero porque assim preferes

e sempre rir do mousse em teu bigode


seríamos muito, se não perturbados 

pelas impossibilidades e sempre quases

e não deixássemos esse tanto ir

não, não conservamos o tempo dos relógios

e aquelas marcas de sábado

no meu corpo já sumiram e no teu

não tive a sorte de me fazer lembrar


o que seríamos se tivéssemos sido

se no silêncio da tarde a rangida da porta

anunciasse tua volta cansada de outros lugares

e eu pudesse te receber com sopros e brumas

de braços abertos coberta pelas ondas dos teus cabelos


o que seríamos se pela ruas passeássemos 

das mãos âmbar entrelaçadas

numa tarde alaranjada que escreve 

teus nomes nas nuvens

pois tu estás em tudo

em mim nos minérios nos nomes e néctar

nos velhos tambores avantes da memória


o que seríamos se eu pudesse celebrar tuas conquistas

se escolhêssemos filmes ruins para noites

tão boas de intimidades e beijos na nuca

e tu percorresse teu rosto são no meu corpo fresco

e cravasse tua boca entre minhas pernas fremes

se após o clamor noturno apenas dormíssemos

e acordássemos e repetíssemos todos

os mesmos dias fluviais


o que seríamos se o acaso tivesse nos unido

mas não, não estais aqui do outro lado da cama

não estás a gargalhar ou esbofetar

os travesseiros pelos prazos apertados

não estás a segurar minhas mãos ou beijar

minhas pernas notívagas

não chegas mais tarde 

e nunca sequer fosses

embora pela manhã.

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2021

mapeei meu peito certa

 



mapeei meu peito certa de que

ao lançar-me às cruzadas

encontraria, talvez

nas cernes estirpes

após soturnos mares

um pedaço de terra

estreito pedaço de chão e crosta

e toda lama, lodo, barro e limo

planta, flor e vegetal

agora à mim pertencem

terra esta que não carrega meu nome

nem a meu respeito haverão registros




todas as lápides erguidas

 



todas as lápides erguidas 

atrás de minhas mudas palavras

tentam desesperadas,

mas não falam de amor

lágrimas martírios são

ainda que de águas eu seja feita  

e por águas eu seja abençoada

estou fluida entre inconstâncias

perpassada e sempre contradita

nos olhares meus que escondem

enraizadas verdades não ditas

sobre não pronuncias de amor