terça-feira, 28 de junho de 2022

Há algum tempo não sei sobre o que escrever

 Há algum tempo não sei sobre o que escrever. As palavras fugiram, desapareceram. Não sei se não escrevo por não ter o que dizer ou por ter sido emudecida. Estou flagrada pelo meu próprio descaso, sem escrever eu não existo, não sou. A palavra me faz? A palavra me constrói? Se o que me edifica é a fala, o que é então o indizível e o silêncio? Teorizo minha própria voz. Minha língua é feita de carne sem osso, o sangue não pulsa nos meus lábios calados. Minha boca é afônica e meu grito se perdeu no atemporal instante do agora. Há algum tempo não digo e não escrevo, deixei de estar. Se não escrevo, também não sinto. Nada bate no meu peito, sou um corpo falecido aguardando as preces dos finados, nada vibra em minhas veias e eu me sinto como ruínas antigas e esquecidas. Sou minha própria homicida, a fala que me foi roubada e meu torso abatido foram arrancados pelas minhas mãos antropofágicas. Não registrei o momento em que morri. Passivamente permiti meu esmaecimento, esse cruel e faminto desaparecimento da Terra. Não faço mais parte de todos os seres, não respiro mais o ar dos meus semelhantes. Meus pés não tocam o chão, minhas mãos não são mais criadoras de mim. Não se pronunciam. O meu lar não me pertence, fui gradualmente abandonada ao esquecer meus discursos. E, ainda que elegida a culpada da minha ausência, nada foi anteriormente previsto por mim. O acaso me fez tropeço e casa, se alojou dentro da minha pele. Entranhado, sorrateiro e vigilante. À espreita, aguardando o dia de metamorfose. Mas ainda há esperança para mim, aquilo que me cala também me transfigura. Os dias passam depressa e eu aguardo o momento em que meu eu amorfo e os vestígios finais da minha existência se erguerão em ressurreição perpétua.

segunda-feira, 6 de junho de 2022

a carne é cruel

 I.

A carne é cruel
mas a abstração dos pensamentos
é capaz de superar qualquer impureza da vida corpórea

A carne é cruel
mas quando repouso minha mente nos travesseiros da casa imóvel
não consigo encontrar a paz que outrora me abraçou

A carne é cruel
e sanguinária
mas não há nada mais
perpétuo e
algoz
do que aquilo que calculo e imagino

II.

Muito se deve
ao desprazer
à dificuldade
de repousar tranquila nas cobertas
durante a tormenta e noites escuras

III.

Há em mim um animal
reside nas minhas vísceras
e rege meus artefatos

Ele me conduz
numa espécie de dança macabra e
sempre à noite
me seduz

Esse bicho é tirano
gargalha minhas proféticas lembranças e
me mostra que tudo aquilo
que conquistei
não passa de uma vivência barata

a própria besta se alimenta
dos meus pesadelos notívagos
e se espreita no mal que há em mim

Pondero minhas palavras
ao descrevê-lo
não posso assobiar
em tons altos sua imagem e semelhança
ele me observa
afinco
e define minhas próprias palavras

IV.

A carne é cruel
mas não há nada mais perpétuo
que a perturbação
da memória, o incrível desassossego
que te rouba o sono e te carrega
com olheiras fundas durante todo o tempo de serviço

V.

Eu necessitava descansar
mas o animal não permite, ele
me levanta durante a madrugada e
me obriga a conviver com meus demônios
como quem há muito espera na sala pelas visitas

Meus olhos pesados não
denunciam o sono furtado
mas a mudez de um choro calado
nostálgico e
muito amargo
que corrompe minhas lacrimosas pupilas dilatadas

VI.

A carne é cruel
se assemelha a um fim
de semana amaldiçoado pela tristeza
mas a insônia e o animal são piores

os pensamentos são cravados nas paredes dos entendimentos

A vida fadigada se faz presente
e
durante as trevas da obscuridade noturna
tudo que imploro é um momento de trégua