sei que numa tarde de domingo
tudo vai passar,
tudo vai virar uma história distante
que você reconta a alguém
com certa dificuldade
em elucidar detalhes.
sei que numa tarde de domingo
você estará a espera da água
esquentar na chaleira
com o cenho franzido
roendo o canto das unhas
descalça apoiada na bancada da pia
tentando recordar como foi
que tudo aconteceu como aconteceu
e não conseguirá,
suas memórias estarão
esmaecidas borradas por névoa
que você nem notou ao chegar.
sei que nessa tarde de domingo
tudo vai parecer meio bobo juvenil
e que será impossível ressurgir
qualquer sentimento desgostoso
e nada mais será nocivo
como foi.
sei que você sorrirá lembrando
de quando escrevias essas premonitórias palavras
no papel do teu caderno,
avisando-a da tarde de domingo
e da água quente
que você está agora esquentando
para passar café.
passou rápido o tempo
- pensamos juntas -
e todos os hábitos de domingo
sucederão então de maneira natural
como deveria ser
e tudo
estará no seu lugar.
e a vida segue assim,
como segue agora
e como seguirá
na tarde de domingo
em que tudo estará tão diferente
e igual.
o paradoxo do tempo
que nos acompanha
desde pequena.
ontem,
hoje,
amanhã.
aqui,
agora
e sempre.
tudo acontece
e por isso
sei que tu sabes
e tu sabias
hoje
quando sei
que numa tarde de domingo
tudo vai passar
e é por isso
que não há espaço
para medo.
✽
a dor flui como uma correnteza tácita e a pouca vegetação que cobre as bordas dessas águas sentem o pulsar lento das ondas minúsculas que se formam da dor que flui. a dor flui, vem e vai. dói e eu permito doer. não existe nada maior e certo do que a surrealidade do tempo.